Notas sobre o Frevo, ritmo dominante do carnaval pernambucano

*Artigo originalmente publicado, em 29 de fevereiro de 2024, no Observatório Psicanalítico
OP 473/2024; link: febrapsi.org/publicacoes/observatorio/observatorio-psicanalitico-op-473-2024/

Notas sobre o Frevo, ritmo dominante do carnaval pernambucano
Carolina Henriques – SPRPE
FREVOOOOOOOOOOOOOO! Esse é um grito de guerra que é pernambucano! Frevando,
frevendo, frevança, nome que quer dizer FERVER.
Neste ensaio, a equipe de Curadoria do OP nos convocou a botar o bloco na rua e levar
todos/todas a seguir o trajeto, para que o frevo com os seus acordes multifacetados, possa
levar a multidão, sem cansaço. Rua que me leva a descer e rua que me leva a subir, sem
dispensar nem as estreitas vielas, nem as amplas avenidas do Recife e seus bairros, ao
som dos clarins e bombos.
Num ritmo frenético os passistas coloridos de retalhos, passeiam com seus minúsculos
shorts ou sainhas, agitando as sombrinhas coloridas que ajudam na evolução para dar o
compasso do frevo: assistimos assim fervilhar verdadeiras travessias em busca da alegria.
As sapatilhas necessárias para dar o ritmo, favorecem a estética da rapidez: os passistas
entrecruzam seus pés, num movimento desmedido de evoluções, parecem seres elásticos e
eu muitas vezes, faço uma pergunta nostálgica: Como um dia já pude tentar fazer esse
passo, esse drible de corpo … serão animais invertebrados?
Assistimos, perplexos, a esse espetáculo dos frevantes, às vezes muito jovens, verdadeiros
bonecos de mola, entregues ao sabor à vida, da euforia da cultura em que estão inseridos,
lembrando os sambistas no Rio de Janeiro. Essa “fervura”, que conota agitação e rebuliço
faz parte dos “balés” dos dançarinos-frevantes.

Relembro agora o “Frevo de Bloco”, de Getúlio Cavalcanti, que iniciou, em 1981, uma série
de produções, que entraram no rol de clássicos do carnaval pernambucano. Inspirado nas
dificuldades dos banhistas do Pina, parte antiga do bairro de Boa Viagem, eminentemente
formada por pescadores, ele compôs o “Ultimo Regresso”, que arrebatou o primeiro lugar,
no III festival de frevança.
Segue um trecho que considero belo, poético, lírico e saudosista:
“Falam tanto que o meu bloco está
Dando adeus pra nunca mais sair
E depois que ele desfilar, o seu povo vai se despedir
No regresso de não mais voltar
Suas pastoras vão pedir
Não deixem não que o bloco campeão
Guarde no peito a dor de não cantar
Um bloco a mais é o sonho que se faz
Dos pastoris da vida singular
É lindo! É lindo ver o dia amanhecer, com violões e pastorinhas mil
Dizendo bem, que o Recife tem o melhor carnaval do Brasil.”
O frevo pernambucano é comemorado em duas datas diferentes, tamanha sua importância
e relevância para a história e cultura brasileiras. Sou completamente tomada de emoção, ao
me ver inserida num desses blocos. Sou paraibana de origem e pernambucana de coração.
Há um refrão que diz: “quem é de fato bom pernambucano, esquece o ano e se mete na
brincadeira, esquece tudo quando cai no frevo e no melhor da festa chega quarta-feira”.
(Luiz Bandeira, Quarta-feira ingrata)
São tantas as belezas poéticas, não apenas sonoras, a que o frevo nos conduz, que à
medida em que vou escrevendo, o som, o ritmo, as letras, as poesias vão chegando e
tomando a minha mente, levando o meu corpo junto.
O frevo nasceu entre os séculos XIX e XX no estado de Pernambuco. Um tipo de
brincadeira portuguesa trazida para o Brasil colonial, que compreendia gracejos e peças
entre amigos, os comes e bebes e o uso de limas-de-cheiro, jogadas por grupos ou
individualmente. Nesta brincadeira, que acontecia nos dias que antecedem a Quaresma, a
distinção entre os espaços privados – o lugar das classes mais abastadas – e os públicos – o lugar do povo – era nítida. A música do frevo tem sua origem na fusão de gêneros
diversos, como a polca, a mazurca e o dobrado, e seu encontro com as bandas de música,
militares e civis, muito em voga em fins do Século 19. Eram estas bandas que animavam os
eventos públicos e as festividades, explorando sua mobilidade e alcance numa época em
que não existia a reprodução de música e as apresentações eram todas ao vivo.
Havia muita rivalidade entre as bandas de música, acirrando-se as disputas em tempos de
carnaval. As capoeiras eram assim acionadas para a defesa de uma ou outra banda, e daí
seu papel importante no surgimento do passo.
Com a forte presença do movimento e da dança, as músicas geralmente não possuem
letras e são aceleradas, resultado da fusão de gêneros como marcha, maxixe, dobrado e
polca, além da influência da capoeira no ritmo. Curiosamente, os passistas utilizavam o
frevo como uma arma de defesa, herança da capoeira e da necessidade de controlar os
foliões e brigas que surgiam ao longo dos carnavais de rua. A presença de guarda-chuvas e
outros objetos também remetem aos capoeiristas ao redor dos blocos para a segurança do
evento. Hoje, há cerca de 120 passos catalogados, embora boa parte deles sejam
complexos e praticados por passistas profissionais.
O ritmo é parte da memória e da história do estado de Pernambuco, especialmente durante
o período de carnaval, com muita originalidade, embora inspirado em diversas outras
expressões artísticas e culturais brasileiras.
O frevo é Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, desde 2012, devido a à riqueza de
uma expressão artística ao mesmo tempo popular e erudita; o ao caráter de resistência de
um ritmo, que surgiu das camadas menos favorecidas, que “resistiam” ao poder das elites e
hoje resiste aos poderes do mercado, que não o privilegiam; a diversidade cultural
condensada no frevo, num processo dinâmico de diálogo entre várias tradições, mantendo-
se um símbolo “vivo” da identidade cultural e da história de um povo. Outro aspecto é a
força do frevo enquanto símbolo identitário – não de um grupo étnico específico, mas como
símbolo de “pernambucanidade”, e, num sentido mais amplo, de “brasilidade”.
No frevo, assim como em nossas clínicas, o desejo pode ter lugar e a esperança de fusão
entre povos e classes, ritmos, compassos e descompassos, dança de guarda-chuvinha.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
Imagem: Museu do Frevo e os frevistas
Categoria: Cultura; Política e Sociedade
Palavras chaves: Frevo, Carnaval, Cultura, Alteridade

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